Onde ela está
feliz está
o sol queima
um pouco mais
na casa nova
em que ela
decidiu
morar
Eu
deito
e
sonho
porque
das coisas
que me sobraram
talvez a menos triste
seja sonhar
Escrever se tornou uma ação estranha e desajeitada. É como se o pedaço do meu cérebro responsável pela criatividade tivesse sido coberto por lama espessa. A luz não consegue mais transpassar essa cortina escura e viscosa que cobre a visão criativa. Quem colocou essa merda lá? Quando? Ou, se ninguém a colocou lá, como diabos ela surgiu? ... Ok, não parece nada muito urgente, mas é no mínimo um incomodo. Me pediram para escrever algo para um cara que anda calado há bastante tempo, quase morto. Mas ele não está morto de fato, seu odor e sua presença algumas vezes invadem o meu plano, esse plano que abracei quando ser eu mesmo se mostrou extremamente pesado e doloroso. Sendo sincero, olhando agora para trás vejo que fui eu mesmo quem espalhou essa lama suja sobre o cérebro, fui eu quem enterrou a leveza e cuspiu na cara do que deveria ser mais simples. Então talvez seja hora de me retratar. Quando te machucaram na infância eu estava lá confuso e sozinho e com medo de levar a culpa, por isso passei todos esses anos fingindo que nunca aconteceu. Mas eu também estava lá quando a pobreza e a crise exigiam mágica para seguir em frente. Eu te vi criar a própria magia enquanto o pai estava desempregado e a mãe mergulhava feito uma âncora em um mar de loucura, álcool e cigarros. Te vi arrancar alguma música de um instrumento patético plugado em um amplificador achado no lixo e reformado como dava. Quando perguntavam do pequeno corte no auto falante tu respondia rindo que era para economizar em um pedal de overdrive. Eu estava lá esse tempo todo. Quando a poesia bateu na porta do teu quarto eu também ajudei a abrir. Quando o demônio da tristeza arranhava as paredes de casa eu também ouvia. E a cada manhã que te via levantar da cama e fazer mais magia eu tinha certeza que nada podia te derrubar. Afinal que tipo de mágica seria forte o suficiente para te fazer sucumbir? E então descobrimos que ela existe e que é forte pra caralho. O defeito de quem está acostumado a vencer é lutar com a guarda aberta, confiando somente na esquiva e no jogo de pernas. Foi aí que os golpes mais duros começaram a entrar, um depois do outro. Round após round acompanhei o massacre de alguém que não conseguia mais reagir, ou melhor, que não queria reagir até o oponente parecer muito mais confuso do que cruel. E como não havia um juiz para iniciar a contagem eu mesmo lancei sobre o teu corpo uma toalha de rendição. Não sabia o que fazer, foi um impulso para não ver morrer o que sempre me foi tão caro. Minha última tentativa de proteger uma chama fraquinha de magia. Te cobri com a toalha e venho absorvendo os golpes por algum tempo. Talvez tempo suficiente para que uma lama espessa cobrisse a chama, mas não o bastante para apagá-la. Fico feliz em não ter te deixado morrer. Tudo em ti, das piores debilidades até as maiores conquistas, as toneladas de histórias que hoje divertem a minha filha, os nichos específicos de conhecimento, tudo ainda está em mim. Por isso te quero aqui, porque eu estou aqui também e tenho certeza que ainda temos muitas coisas espetacularmente banais para conquistar. Tudo soa confuso e vergonhosamente otimista, eu sei. Mas acho que estou disposto a correr esse risco de soar caricato como alguém que sobreviveu a um desastre agarrado em uma porta de banheiro.
Uma sirene insistente
irrompe a noite
estraçalhando vidraças
e minúsculos ossos auditivos
Lou Reed bravamente
se impõe - sem sucesso -
num duelo de facas
onde as lâminas ressoam
confusas
- som visão e sabor -
Embriagado tudo parece maior
ou mais complexo
mais triste com certeza
Aqui ou em Nova Iorque
ela me narra sentimentos semelhantes
Estamos todos doentes
e é Natal e os terapeutas
complementam receitas
- pai filho e espírito santo -
Estar sozinho é muito mais
do que só uma opção
Segunda feira, vinte e 5 de dezembro de 2000 e vinte e três
I
Faz tanto tempo
minhas mãos frias
quase não conseguem
porque frias são também
as mãos dos que morrem
&
eu sei que quase morri
aquele tipo de morte feia e pouco heroica
como qualquer outra morte possível
nesse planeta cada vez mais quente
II
Foi por pouco, mas sobrevivi
[eu acho]
Ainda que com as mãos mortas
e um coração sanguíneo
devorando galáxias
e sanduiches de frios
comprados em algum
secos e molhados da infância
[Consegui]
Como Sísifo, enganei a morte
e agora tenho essa enorme pedra na alma
para provar que não estou mentindo
III
Há uma nova realidade pós vida
com tanta coisa adormecida
que me pego andando nas pontas dos pés
no apartamento onde vivo
- e nem assim obtive sucesso -
Algo acordou
um sentimento estranho em algum lugar
entre o cérebro e o estômago
algo que ainda não nomeei
mas com força suficiente
para arrastar essas mãos glaciais
ao encontro de um poeminha sem jeito
escondido sob a grossa ferrugem do tempo
- Y.P.